Pesquisas indicam que o confinamento fortaleceu os laços familiares

Vinicius Lobato
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Pessoas que coabitam debaixo do mesmo teto conhecem bem a rotina umas das outras, entendem quando alguém está esfuziante ou em maré baixa e sabem quais são suas grandes aspirações, certo? Não necessariamente — e isso ficou cristalino quando veio a pandemia e, de supetão, o dia a dia familiar ficou de pernas para o ar, evidenciando quanto estar lado a lado nem sempre é sinônimo de intimidade e revirando arran­jos que pareciam imutáveis. Assim que o confinamento tornou-se inevitável, pais abraçaram o home office; os filhos, o ensino a distância; todos passaram a respirar um único ar; a pressão subiu; e o resto já virou história. Houve excesso de convívio, stress, brigas e até separações. Mas o que emergiu daí, agora que o cotidiano começa, lentamente, a voltar à normalidade, são laços profundamente repaginados pelas circunstâncias e, em geral, mais firmes.

Vários estudos têm servido de termômetro para medir a chacoalhada nos lares de todo o planeta, inclusive os brasileiros — uma rajada em escala global que sacudiu a relação entre adultos, crianças e uniu esses dois mundos. Uma das pesquisas, conduzida pela escola de educação da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, revela que pais que costumavam estar distantes do universo navegado pelos filhos acabaram por se inteirar de seus interesses e aflições como nunca antes: 68% afirmam ter se aproximado da prole, e isso se deu à base de muita conversa. “Observamos que boa parte dos pais, normalmente consumidos pelo trabalho, desenvolveu um novo senso de família”, resume Rick Weissbourd, coautor do estudo. Um levantamento do governo britânico ajuda a dar contornos à virada — seis de cada dez adultos ouvidos reconhecem que, quarentenados, elevaram de forma significativa os cuidados com a garotada que perdeu o norte. “No início, houve uma imensa desorganização e o caos se instalou, mas quem se esforçou para aprimorar o diálogo e vencer a fase de adaptação teve um saldo bastante positivo”, diz a psicóloga Ceres Araujo, doutora em distúrbios da comunicação humana pela Unifesp.

VIROU MUTIRÃO – Marcela e Diego põem a mesa com a ajuda dos filhos, novidade pós-quarentena: o confinamento trouxe a casas como a deles a noção de que tarefa doméstica também é coisa de criança –Ricardo Borges/VEJA

O inesperado desmantelamento da vida como ela era forçou a aquisição de novos hábitos, não sem dor nem conflito. E aí crianças e adolescentes que pouco (ou nada) contribuíam nos afazeres domésticos, tocados por empregados que foram temporariamente para casa ou pelos próprios pais, tiveram de entrar em cena. “Ao que tudo indica, a pandemia deixará como legado uma divisão mais igualitária das tarefas básicas do lar e uma união maior das famílias”, diz Regina Szylit, diretora da escola de enfermagem da Universidade de São Paulo, que deu a largada a uma pesquisa que se debruça justamente sobre as transformações nos elos familiares nestes tempos estranhos. Os adultos também precisaram se amoldar à nova dinâmica das divisões, já que delegar nem sempre é trivial. “Ninguém vai fazer as coisas do meu jeito, eu sei, mas percebi que as crianças gostaram de ter mais responsabilidade e de se sentirem úteis, o que é um avanço”, afirma a influenciadora digital Marcela Laranjeiras, 38 anos, carioca e mãe de um quarteto de faixa etária que vai dos 5 meses aos 13 anos.

O fato de as famílias terem atravessado juntas a turbulência também as uniu. Houve perdas de emprego e os ajustes financeiros afetaram a todos. “Nós nos mudamos para um apartamento menor e temi que meus três filhos sofressem. Fui criticada por me mostrar vulnerável para eles, porém, no fim, isso os fez amadurecer”, afirma a fotógrafa Vivian Manzur, 38 anos, de Brasília, que em meio à crise teve uma sensação que lhe proporcionou doses de satisfação. “Eu e meu marido passamos a nos interessar mais pelas atividades das crianças e a conhecê-las melhor”, afirma.

MAMÃE TAMBÉM JOGA – Com tempo de sobra, a brasiliense Vivian aceitou o desafio de se aventurar no universo dos games com os filhos: “A última vez que estive tão disponível para eles foi na licença-maternidade”, diz –Cristiano Mariz/VEJA

Dito assim, pode soar demasiado idílico, o que nem de longe essa experiência é. Mas, sim, neste cenário de tantas privações se exercitaram pela primeira vez certas capacidades preciosas — desde repartir com racionalidade e delicadeza o espaço dentro de um mesmo apartamento até bater à porta do filho adolescente para engatar um assunto sobre o qual pesava o silêncio. Novos hobbies também foram cultivados em casa, numa tentativa de preencher o tempo que se alongou com o confinamento. Professora de educação física no interior paulista, Talita Tavares, 37 anos, é a grande incentivadora de uma espécie de telejornal que os filhos Arthur, 7 anos, e Caetano, 5, passaram a produzir com a meia-irmã, Gabriela, de 25, no YouTube. “Desse jeito, entendo melhor como este momento está sendo encarado por eles”, reflete Talita.

A esta altura, é natural que todos almejem cortar o cordão, de preferência preservando aquilo que o convívio em um contexto tão atípico deixou de mais valioso. “Confesso que ficamos tanto tempo juntos que sinto falta de ter momentos só para mim”, desabafa a professora de educação física, que dá voz a um desejo muito humano de uma turma numerosa. Uma pesquisa da Sociedade Americana de Psicologia constatou que o stress se abateu com mais vigor exatamente sobre o teto daqueles que têm crianças em casa. “É esperado que se instaure uma sensação de alívio com a flexibilização e a volta à normalidade”, lembra a terapeuta de família Lidia Aratangy. Alguns, porém, já sentem saudades da imersão, como descreve o ator Thiago Fragoso, 38 anos, que acaba de voltar a gravar Salve-se Quem Puder, novela das 7 da Rede Globo. “Mesmo indo aos estúdios a cada duas semanas, foi um baque me afastar dos cuidados diários das crianças”, diz o pai de Benjamin, 9 anos, e Martin, de 5 meses, casado com a atriz Mariana Vaz, 41. E assim, posta a se adaptar a cada novo dia, caminha a humanidade pós-pandemia.

Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707

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