Neste momento, o Brasil já registra mais de 500 mil casos de dengue em 2024, quase quatro vezes mais do que os registrados no mesmo período de 2023, com 75 mortes confirmadas em decorrência da doença neste ano .
Surtos da doença, entretanto, não são uma novidade no país, que teve a primeira epidemia documentada em 1981-1982 e, desde então, alterna circunstâncias de endemia (com circulação local) e epidemia do vírus .
Dada a larga experiência do país com a doença, o crescimento de casos nesta época do ano era facilmente previsível, porém o ritmo de avanço tem surpreendido, sendo explicado pela combinação de altas temperaturas e chuvas intermitentes decorrentes de alterações climáticas, inclusive o El Niño .
O papel do Estado é fundamental no combate à dengue, cuja atuação é instrumentalizada por meio de contratos administrativos.
Parcerias tecnológicas
Nesse contexto, as Parcerias Tecnológicas do Sistema Único de Saúde (SUS) têm sido fundamentais nos avanços alcançados até o momento.
Entretanto, o caso da dengue parece demonstrar a existência de um aspecto sensível dessas parcerias — que chamaremos de viés tecnológico. Por isso, entender o caso da dengue — enquanto dinâmica de atuação estatal — pode trazer importantes elementos analíticos sobre as Parcerias Tecnológicas do SUS e seu regime jurídico.
Um marco importante para a compreensão do tema foi a Reunião Internacional para Avaliação de Alternativas para o Controle do Aedes aegypti no Brasil, promovida pelo Ministério da Saúde, com apoio da representação brasileira da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), e realizada em fevereiro de 2016 .
Deu ensejo à reunião a circulação simultânea de arboviroses transmitidas pelo mosquito (dentre as quais as mais conhecidas são dengue, chikungunya e Zika) e, especialmente, a consequente epidemia de microcefalia que se instaurou no Brasil entre 2015 e 2016 e que levou à decretação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional .
A reunião, que congregou especialistas do Brasil e do mundo, identificou que os métodos de controle então adotados pelo Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD) não eram suficientes para diminuir a população de mosquitos e reduzir a incidência de arboviroses.
Além disso, constatou-se — em entendimento unânime dos especialistas presentes — que inexistia solução única para o problema e que o adequado seria a implementação das diferentes estratégias disponíveis, de forma integrada, desde que fossem seguras, eficazes e compatíveis entre si .
Naquela oportunidade, foram mapeadas as tecnologias em desenvolvimento para incorporação ao PNCD, dentre as quais tecnologias que utilizam insetos estéreis, quebrando a cadeia de reprodução dos mosquitos (esterilização por radiação ou modificações genéticas — sterile insect technique ou SIT); e tecnologias que diminuem da capacidade de transmissão do vírus pelo mosquito, por meio da utilização da bactéria Wolbachia.
Desde então, novas tecnologias foram incorporadas ao combate à dengue e demais arboviroses. O caso mais notório é o da vacina da dengue.
A vacina
A vacina Qdenga, da fabricante japonesa Takeda, foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em março de 2023 e o SUS foi o primeiro sistema de saúde pública do mundo a oferecer o imunizante, que já foi incorporado ao Programa Nacional de Imunização .
Entretanto, dada a criticidade da epidemia atual, a vacina já está em falta na rede privada e a quantidade adquirida pelo SUS foi a maior realizada no mundo para o imunizante — mas, ainda assim, a quantidade foi ínfima quando contrastada à demanda e à necessidade real do país, ainda mais quando se considera que a Qdenga é a única vacina contra dengue aprovada no Brasil para público amplo .
A solução proposta pelo Ministério da Saúde para a escassez da vacina Qdenga são parcerias tecnológicas envolvendo o fabricante da Qdenga e os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO) Butantan (SP) e Fiocruz (RJ), com centralização de aquisições pelo Ministério da Saúde, permitindo ganho de escala.
Reprodução
Por outro lado, para que a população tenha acesso a mais de uma vacina (reduzindo os efeitos do gargalo produtivo da Qdenga), a Anvisa adotou procedimento especial de submissão contínua para avaliar “em tempo real” os documentos do dossiê sanitário da vacina Butantan-DV, o que deve acelerar sua aprovação e disponibilização ao SUS .
A vacina Butantan-DV está, também, no âmbito das Parcerias Tecnológicas do SUS. Neste caso, o Instituto Butantan licenciou tecnologia desenvolvida pelo National Institute of Allergy and Infectious Diseases (Niaid) do National Institutes of Health (NIH — vinculado ao U.S. Department of Health and Human Services) mas que tinha sérias limitações para o contexto brasileiro, já que a TV003 (vacina do Niaid) deve ser armazenada a -70° Celsius.
Para superar esse empecilho e permitir o armazenamento em geladeiras comuns (o que é essencial num país com as dimensões e a desigualdade socio-regional do Brasil) o Butantan desenvolveu uma nova formulação, com vírus liofilizado. Com o avanço nas pesquisas do Butantan, a farmacêutica Merck Sharp & Dohme (MSD) — que havia também licenciado a TV003 para desenvolver, a partir dela, sua própria vacina — associou-se em parceria ao LFO brasileiro para absorver o desenvolvimento tecnológico incremental alcançado pela Butantan-DV — prevendo pagamentos ao instituto que podem superar US$ 100 milhões .
Butantan-MSD
O arranjo Butantan-MSD é, creio eu, inédito no Brasil e está relacionado ao sucesso no desenvolvimento da Butantan-DV que, inclusive, resultou na obtenção de patente perante o Instituto perante o United States Patent and Trademark Office (USPTO) .
No acordo, a MSD licenciou a tecnologia do Butantan e, caso desenvolva novos recursos a partir dela, estes estarão disponíveis também para utilização do instituto.
Diferente do que ocorre na esmagadora maioria das Parcerias Tecnológicas do SUS, neste caso o interesse do parceiro privado não é no mercado público (ganho de escala) — já que o Instituto tem a exclusividade para o mercado brasileiro, enquanto a MSD detém os direitos para os Estados Unidos, Japão, China e Europa — mas sim o know-how do Butantan.
Ainda no campo das Parcerias Tecnológicas, a Fiocruz celebrou em 2023 acordo com a World Mosquito Program (WMP – vinculada à Monash University da Austrália) para a construção de biofábrica de mosquitos inoculados com a bactéria Wolbachia que dificulta a transmissão de doenças pelo Aedes aegypti, com investimentos públicos e privados que devem somar R$ 180 milhões .
A Anvisa demonstrou o necessário engajamento para viabilizar a execução da parceria, concedendo autorização excepcional (como via expressa de liberação sanitária), nos termos do Voto n° 194/2022/SEI/DIRE3/ANVISA.
Mais uma vez, vemos uma circunstância atípica, isto é, investimentos em infraestrutura associados a uma Parceria Tecnológica do SUS. No caso das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), modelo mais difundido de Parceria Tecnológica do SUS, não há previsão de investimentos do parceiro privado na infraestrutura do parceiro público (LFO).
A dificuldade dos LFO para obter e gerir os recursos para as adaptações de infraestrutura necessárias à absorção de tecnologia no âmbito das PDP tem sido apontado, justamente, como uma das maiores fragilidades desse modelo.
Os casos das vacinas Qdenga e Butantan-DV e do método Wolbachia apontam caminhos interessantes, distintos das já tradicionais PDP, para solução dos desafios de acesso a novas tecnologias no âmbito do Sistema Único de Saúde.
É notável, ademais, o engajamento do ambiente institucional (especialmente Ministério da Saúde e Anvisa) para viabilizar a implementação dessas parcerias, com a flexibilidade para tanto necessária. Observa-se nisto, na prática, o duplo sistema de regulação (por contrato e por agência), com relação menos imperativa e mais consensual entre parceiros público e privado na definição da política pública de combate a arboviroses no Brasil, sendo possível situá-las no novo contratualismo administrativo .
A experiência recente da epidemia de dengue, entretanto, mostra, também, um outro lado da sistemática que parece subjacente às Parcerias Tecnológicas do SUS. As conclusões da Reunião Internacional para Avaliação de Alternativas para o Controle do Aedes aegypti no Brasil de 2016 apontaram diversas tecnologias promissoras para o combate às arboviroses e a necessidade de sua implementação conjugada, de modo complementar, para maior eficácia no controle dessas doenças. Entretanto, é possível observar que houve tecnologias então mapeadas que, posteriormente, passaram a ser ignoradas pelo Ministério da Saúde.
Esse é o caso, destacadamente, da SIT por esterilização genética. A mais recente Nota Informativa n° 37/2023-CGARB/DEDT/SVSA/MS que apresenta orientações para implementação de novas tecnologias de controle vetorial não menciona a técnica de combate ao Aedes aegypti pela introdução de mosquitos geneticamente modificados (OGM – Organismo Geneticamente Modificado).
Entretanto, em 2020 a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou para comercialização no Brasil os mosquitos transgênicos (Parecer Técnico nº 7.350/2021 [29]), que já são encontrados no mercado privado.
A maior flexibilidade exigida para a implantação bem-sucedida das Parcerias Tecnológicas do SUS vem acompanhada do incremento do ônus argumentativo do Ministério da Saúde ao definir as tecnologias que serão adotadas.
É lógico que a incorporação de qualquer estratégia de controle vetorial deve ser baseada em evidências científicas, mas a ausência da formalização de argumentos — seja para adotar a tecnologia transgênica ou para refutá-la — parece a indicação de um viés que beneficia determinadas soluções em detrimento de outras – o que, num caso como o da dengue, que exige a adição complementar do máximo de soluções possível, vai de encontro ao interesse público.
Esse enviesamento pode estar determinado pelo protagonismo que os LFO de vanguarda (como Butantan e Fiocruz) têm perante o Ministério da Saúde.
Talvez as tecnologias que possuem mais sinergia com esses laboratórios ganhem primazia no delineamento da política pública para arboviroses — o que é legítimo. Entretanto, é preciso cuidar para essa primazia e protagonismo não eliminem (ao menos sem justificativa fundamentada) outras soluções que poderiam contribuir para a redução do impacto da epidemia atual — ainda que não via parcerias, mas por meio de aquisição simples.
Em suma: a epidemia de dengue nos apresentou novas modelagens para Parcerias Tecnológicas do SUS que poderão ser bem aproveitadas no futuro, em outros casos, mas, também, acende alerta para a possibilidade de “captura” das políticas que definem a adoção de tecnologias pelo SUS e de discriminação de determinadas soluções menos “populares”.