Estados Unidos: as milícias armadas ganham as ruas nas eleições

Vinicius Lobato
Por Vinicius Lobato
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Falar em milicianos, no Brasil, é lembrar das gangues paramilitares que controlam por coação e armas boa parte das favelas do Rio de Janeiro. No entanto, milícias também entraram na ordem do dia na reta final da campanha eleitoral dos Estados Unidos, só que, neste caso, empunhando as táticas da violência não para ganhar território e dinheiro, mas em nome de altos — e tremendamente duvidosos — princípios morais. Nos vários estados onde atuam, as milícias americanas têm ido às ruas defender Donald Trump, por acharem que ele incorpora seus ideais de pátria “limpa” de imigrantes, de negros e de interferências indevidas na liberdade de cada indivíduo. Atuando cada vez mais abertamente, elas foram alvo de uma investigação do FBI que resultou, nos últimos dias, na prisão de treze milicianos acusados de tramar para sequestrar a governadora de Michigan, a democrata Gretchen Whitmer. Logo depois, a polícia informou que o mesmo grupo, o Wolverine Watchmen, também planejava sequestrar o governador da Virgínia, Ralph Northam, e reunira um arsenal de explosivos para os ataques.

Para o diretor do FBI, Christopher Wray, o extremismo da direita radical americana alcançou o patamar de “ameaça nacional prioritária”, sendo responsável por cerca de 1 000 atos terroristas por ano. Muitos são ataques dos chamados “lobos solitários”, sem relação com qualquer tipo de grupo ativista, mas a ação de alguns bandos vem se sobressaindo à medida que se aproxima o 3 de novembro. Calcula-se que existam espalhados pelo país entre 15 000 e 20 000 milicianos ativos em mais de 300 organizações. Ao menos 25% deles são veteranos das Forças Armadas, treinados no uso de armas pesadas — coletes, camuflagem e fuzis são marcas registradas.

Além do Wolverine Watchmen, outras organizações armadas da extrema direita vêm chamando a atenção das autoridades, como a Oath Keepers, a Three Percenters, os bandos reunidos sob o guarda-chuva do “movimento boogaloo” e os Proud Boys — este, um violento grupo neofascista exclusivamente masculino que Trump, no debate com Joe Biden em setembro, aconselhou a “recuar e permanecer a postos” contra a ameaça da esquerda. A grande maioria prega a liberação total do porte de armas e o fim da interferência do Estado em temas como segurança pública e imigração. Vários defendem uma interpretação da Constituição segundo a qual o direito à liberdade civil e de expressão se sobrepõe a qualquer outro. Durante décadas, as milícias adotaram uma postura contra o governo — qualquer governo —, mas a eleição de Trump mudou esse cenário. “Os atos de violência aumentaram, incentivados pela retórica agressiva do presidente e por sua insistência em espalhar teorias conspiratórias”, afirma Darren Mulloy, historiador da Universidade Wilfrid Laurier, no Canadá.

ORGULHO DE QUÊ? - Integrante do grupo neofascista Proud Boys, citado por Trump: exclusivo para rapazes –Andrew Lichtenstein/Getty Images

No polarizado universo político atual, as organizações conservadoras ganharam rivais na extrema esquerda e nos ramos radicais do movimento negro. O mais estridente dessa ala é o Not Fucking Around Coalition (“Não estamos para brincadeira”, em tradução publicável), também uniformizado e fortemente armado. Seu líder, John Jay Johnson, nega que o grupo desempenhe atividades paramilitares ou que tenha qualquer paralelismo com o Black Lives Matter, principal mobilizador de passeatas contra o racismo e a violência da polícia. Johnson também foge de comparações com o extinto Panteras Negras, radicais apoiadores de atos violentos durante o movimento pelos direitos civis, na década de 70. “Há, sim, grupos radicais na esquerda, mas a questão das milícias não é um problema bipartidário. A grande maioria se encaixa na extrema direita”, avalia o cientista político Lane Crothers, da Universidade Estadual de Illinois, ressaltando que, de 42 assas­sinatos cometidos por extremistas políticos em 2019, 38 caíram na conta de militantes da direita radical.

Organizações paramilitares ocupam uma posição particular nos EUA, onde a famosa Segunda Emenda garante aos cidadãos o direito de formar associações e convocar reuniões para discutir qualquer tema de interesse comum, sem restrições. Baseia-se aí a existência, jamais sumariamente proibida, dos encapuzados supremacistas brancos da Ku Klux Klan. “Nos estados onde o porte de arma é legalizado, a formação de uma milícia está aberta a interpretações”, diz Sam Jackson, especialista em movimentos armados da Universidade Estadual de Nova York. Presentes nas manifestações de rua, a pretexto de proteger prédios públicos e a própria polícia, e circulando à vontade em comícios e marchas pró-Trump, as milícias americanas, por muito tempo recolhidas a cantos remotos, cresceram e (infelizmente) apareceram.

Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709

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